terça-feira, 26 de maio de 2009

Salvador?

(Parte VII)

Acorda com a Dona Angélica lhe cutucando...

- Menino? Você dormiu na sala??
- Oi (disse limpando a baba)... hein?!...
- Menino, você dormiu na sala... meu Deus... e essa garrafa de bebida?!? Vazia?!!?
- É... é...
- Já entendi... vou fazer um café forte prá você...
- Que horas são?
- Sete e meia... o horário que eu sempre chego... vai tomar um banho vai...
- Ó, tem dinheiro ali perto do telefone... pro pão e pro mercado...
- Tá bom menino... vai logo tomar seu banho.

Partiu para o banho. Enquanto deixava a água escorrer pelo corpo, a imagem de Rita lhe voltava à mente. De novo não, pensou. A cabeça doía. Abriu os olhos e ficou olhando a água cair pelo seu corpo. Terminado o banho, enxugou-se e deitou na cama.

Meu Deus do céu, eu nunca vi alguém ser tão cruel, pensou.

Levantou-se, parou na frente do espelho, olhou-se como se quisesse ver sua alma, e, seus olhos encheram-se de lágrima. Que culpa teve Rita? Porque mereceu tal infortúnio? Pensou mais uma vez.

- Ei! Você é um advogado! Esqueça o sentimento! Faça o seu trabalho! Dê a garantia imaculada da ampla defesa para seu cliente! Disse em voz alta para si mesmo.

Respirou, encheu-se de ânimo, e vestiu-se. Tudo havia sumido, o cheio do cadáver, a imagem de Rita. Tudo havia voltado ao normal. Foi até a cozinha.

- Menino, você está bem? Tá caidinho...
- Não é nada não... é cansaço... estresse...
- Tem que tomar cuidado... isso mata... e você é novo... tem que aproveitar mais a vida... olha seu pai e sua mãe... os dois bonitões... passeando, viajando...
- É... eu vou frear um pouco. Disse da boca prá fora, só para que Dona Angélica não encompridasse mais a conversa.
- Isso mesmo. Olha, fiz o sanduíche, acabou de sair da sanduicheira.
- Põe numa vasilha prá mim? Vou levar para o escritório.

Partiu para o escritório, mas antes, entregou a vasilha para o porteiro. Não ia conseguir comer nada. Seu estômago estava revirado e aquele gosto de cabo de guarda-chuva teimava em não sair, mesmo depois de 3 balas de menta.

Chegando ao escritório, antes mesmo de Lucélia, liga o computador e fica inerte diante do mesmo. Onde estaria aquela vontade, aquele ânimo que há pouco havia lhe acometido? É! O caso de Francisco estava lhe sugando. A crueldade nua e crua na sua frente.

Uma coisa era o cara roubar ou atirar em alguém por ocasião da situação. Aquela crueldade não poderia existir nos seres humanos. Pensou.

E pela primeira vez pensa em abandonar o caso. Não poderia defender alguém tão cruel, que matasse simplesmente por prazer. Nem os animais (irracionais) fazem isso.

Nisso, o telefone de sua sala toca, nem tinha se dado conta do tempo que já havia passado naquela manhã.
- Doutor?!
- Oi Lucélia...
- É o Dr. Maciel, posso transferir a ligação?
- Sim, sim...

[...]

- Alô? Maciel?
- Oi Salva... que cliente você arranjou hein... posso passar aí prá gente conversar?
- Pode vir... tô te esperando... abraços
- Abraços...

Enquanto espera Maciel para um pouco em frente a janela e contempla o nada. Lembrou das aulas de ética, principalmente quando o professor dizia que o advogado criminal não é obrigado a considerar sua opinião sobre a culpa do acusado. Além disso, essa conduta era um dever do causídico que assumira tal encargo.

Não iria mais se importar com a culpa do seu cliente. Com a crueldade com que ele tratou a vítima. Não queria saber se ele tinha ou não prazer em fazer aquilo. Era advogado e sua função era defendê-lo de todas as injustiças que poderiam ser cometidas.

Novamente toca o telefone de sua sala, era Lucélia avisando sobre Maciel. Prontamente mandou-o entrar.

- Como vai meu amigo?
- Salvador, o caso é muito sério...
- Calma cara, bom dia primeiro né...
- Realmente você acertou, é um psicopata, dos mais perigosos. Assassino em série...
- Peraí!? Em série? Ele te confessou algo além desse crime?
- Não... mas, com certeza irá cometer crimes iguais, com mulheres de mesmas características, como idade, cor do cabelo, cor da pele...isso se já não cometeu...
- Olha... até onde eu verifiquei todos os documentos dele estão ok, e não tem nenhum outro crime de qual ele seja acusado...
- Aqui em Londrina que não tem né...
- Não... pesquisei na região...
- Bom, ele tem o perfil de um assassino em série...
- Como você chegou a essa conclusão, me diga...
- De acordo com a história de vida que ele me contou, ele sempre foi muito pobre, tinha 6 irmãos, todos com problemas mentais, os pais eram primos-irmãos, e, ele era o único que não saiu retardado, como ele mesmo disse... e, como viviam em uma casa muito pequena, todos dormiam no mesmo quarto... por várias vezes flagrou seus pais tendo relações sexuais, onde seu pai batia, espancava e fazia vários tipos de sevícias com sua mãe...
- Entendi o porquê da crueldade desse cidadão...
- Calma, ainda tem coisas piores... seu pai teve uma doença onde surgiam várias feridas pelo corpo, e ele é quem era obrigado a fazer os curativos, e quando não o fazia, sua mãe o espancava... por muitas vezes teve que remover a carne necrosada e podre do corpo de seu pai...
- Que coisa!
- É, depois de um tempo, já que seu pai não conseguia mais ajudar no sustento da casa, sua mãe começou a se prostituir, e para ludibriar o marido, levava Francisco junto, como um álibi, para dizer que estava trabalhando como doméstica na casa de senhoras...
- Sei...
- Mas o pior é que ele era obrigado a ir com a mãe nos programas, e, se olhasse para ela no momento do ato sexual, era espancado, tanto pela mãe, quanto pelo cliente dela... uma certa vez, ele relatou que quebrou a perna, tamanha a violência... e, pasme... tudo isso ocorreu quando ele tinha apenas 8 anos de idade... aos 11 anos fugiu de casa com uma irmã, e acabaram indo parar em um orfanato... como ela tinha olhos verdes...acabou sendo adotada, mesmo com algum retardo mental... e ele... acabou fugindo...
- Maciel, que vida... coitado deste homem... e você conseguiu extrair mais alguma coisa dele?
- Acho que apenas 30% da vida dele ele me contou... falou sobre algumas namoradas... sobre empregos... mas nada muito aprofundado... apenas falou que não conseguia trabalhar por muito tempo nos empregos e que suas namoradas achavam ele meio agressivo durante a relação sexual... Por isso que te digo que esse homem é perigoso...ele não parece reagir muito bem às emoções, ele é muito frio...calculista... parece não se importar com o sentimento das outras pessoas...
- Ele disse algo sobre a Rita?
- Ele descreveu friamente como a matou... não esboçou qualquer tipo de reação... típico comportamento psicopático...
- Pois é... depois de tudo que esse homem passou na vida...
- Salva... ele não é um coitado... você sabe disso... esse cara tem que se tratar... ficar preso... no manicômio... sei lá... pra mim... esse cara teria que ser morto...
- Maciel... eu sou um profissional... se eu assumi esse caso... vou levá-lo até o fim... é o dever de minha profissão... não posso acreditar que ele é um monstro... uma pessoa irrecuperável... tudo o que ele se tornou hoje, não foi por opção... ele foi levado a fazer tudo o que fez... eu não o culpo... seus pais é que foram os maiores culpados...
- Só que ele não pode permanecer solto... ele irá matar sempre... está implícito na personalidade dessa... dessa coisa... esse cara não tem recuperação... ele tem que passar o resto da vida em tratamento... não há cura... você tem que entender isso...
- Como não há cura Maciel? Ele é um ser humano... pode ter defeitos... defeitos terríveis com certeza... mas isso não descaracteriza como humano... eu acredito que ele pode se tratar sim, eu tenho esperança em poder recuperá-lo... e, não sei se a cadeia, ou o manicômio seriam ideais para a cura deste homem... e outra não há como prevermos se ele irá matar novamente ou não... ele não te confessou nada...
- Não é porque não tenha confessado que não tenha feito... você sabe que o comportamento dele será sempre o mesmo... não mudará nunca... a personalidade dele é defeituosa... não tem correção...
- Será Maciel? Eu vasculhei a vida desse cara... não encontrei nada que o incriminasse... nem uma multa de trânsito sequer... acredito que, com o tratamento adequado ele se recuperará
- Salva, não seja inocente... esse tipo de criminoso é muito ardil... ele pode usar nome falso, diploma falso, documentos falsos... ele pode estar te enganando e você nunca saberá...
- Calma Maciel... eu chequei tudo... e outra... não adianta você se desesperar, eu vou até o fim... já assumi essa causa...
- Bom, você quem sabe meu amigo... tome muito cuidado... muito cuidado... esse ser não merece andar solto pelas ruas... pelo bem da sociedade faça ele se entregar...
- Fique tranqüilo... eu farei o que tiver que ser feito...
- Espero que faça o certo...

E dessa forma a conversa havia se encerrado. Maciel deu um tapinha nas costas de Salvador que correspondeu.

Salvador sentia que suas forças decididamente haviam se renovado. Não via mais uma pessoa cruel em Francisco, via sim, uma criança indefesa tentando buscar a solução de problemas que nem ela mesma conhece.

*** CONTINUA ***

terça-feira, 19 de maio de 2009

Salvador?

(Parte VI)

Salvador, depois de algumas horas de trabalho, decide que o expediente deveria encerrar por ali, desliga seu computador, verifica se todas as luzes de seu escritório estão apagadas e se Lucélia esqueceu de algo. Fecha a porta e parte para a garagem. Estava todo orgulhoso, pois a reforma em seu escritório estava ficando muito boa.

Já dentro de seu carro liga o rádio, não consegue achar uma estação que lhe agrade, abre o porta-luvas, vasculha os CD’s e acha o ABBEY ROAD ALBUM. Já havia se esquecido do quanto gostava deste CD. O trabalho lhe estava tomando um precioso tempo na vida, mesmo assim, não se importava muito com isso. Achava que esse era o momento de dar o melhor de si na profissão.

As sementes já estavam plantadas logo logo iria colher os frutos.

Partiu para seu apartamento ao som de Here Comes the Sun, estava tão exausto que já não queria pensar em mais nada. Entrando em seu duplex, olhou a geladeira e sentiu saudade da comida de sua mãe. Ele esqueceu de deixar o dinheiro para Dona Angélica fazer as compras. Suspirou, decidiu tomar um banho e depois pedir algo para jantar.

De banho tomado, liga para uma pizzaria e pede uma pizza grande, estava faminto. Seu celular toca. Vai até a sala e verifica que é uma chamada não identificada. Atende mas não ouve nada. Somente um suspiro. Acha estranho, mas não dá importância. Senta no sofá, liga a TV, procura algum canal até que encontra um que está passando House. Era um episódio que ainda não tinha assistido, e, assim, fica esperando a pizza chegar.

Estava se sentindo um pouco incomodado. Não conseguia arrumar um jeito de deitar no sofá. Até que percebeu que não estava conseguindo se desligar do caso do Francisco. Aquela imagem do cadáver de Rita aparecia toda vez que fechava os olhos. Respirou fundo, disse para si mesmo “ei... é só mais um caso...”, mas não parecia funcionar.

A pizza chega. Estava sentindo um misto de fome e ânsia. Aquele cheiro de carniça parecia voltar com alguma intensidade. Foi até o quarto, pegou no bolso do paletó o pote de rapé. Colocou uma grande quantidade e inalou. Espirrou com muita vontade, com tanta vontade que chegou a ficar levemente zonzo. Deitou na cama e esperou alguns minutos.

Sentiu uma certa melhora, levantou-se e foi até a cozinha, pegou dois pedaços de pizza, uma lata de cerveja e sentou-se no sofá da sala. O House já tinha terminado, mudou de canal, mas nada lhe agradava. Desligou a TV, pegou os classificados e começou a vasculhar os anúncios como forma de aplacar seu estado. Entre anúncios de carros e casas de massagem, sentiu que aquela noite seria longa.

Não conseguiu comer mais nenhum pedaço de pizza. Estava novamente sentindo ânsia. Respirou fundo novamente. Fechou os olhos. A imagem do cadáver voltou juntamente com o odor de carniça. Sentiu um amargo na boca, e andou até o banheiro. Levantou a tampa da privada e vomitou. Ficou ali parado em frente ao vaso por alguns segundos. Lavou o rosto, enxaguou a boca e foi deitar.

Não conseguia dormir.

Foi até cozinha, pegou a garrafa de Jack Daniels e tomou no gargalo mesmo. Levou a garrafa até a sala, olhou na disqueteira, pegou um CD do Pink Floyd, pôs para tocar, desligou a luz e ficou bebendo ao som de Astronomy Domine.


*** CONTINUA ***